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OS DESAFIOS DA COMUNICAÇÃO RURAL SOBRE OS AGROTÓXICOS EM UMA REGIÃO AGRÍCOLA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, BRASIL
(especial para SIIC © Derechos reservados)
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Autor:
Frederico Peres
Columnista Experto de SIIC

Artículos publicados por Frederico Peres 
Recepción del artículo: 20 de mayo, 2003
Aprobación: 0 de , 0000
Conclusión breve
O presente estudo objetiva analisar os aspectos de comunicação relacionados ao procedimento de uso de agrotóxicos em uma região agrícola. O estudo foi realizado na região da Microbacia do Córrego de São Lourenço, Estado do Rio de Janeiro.

Resumen

O presente estudo objetiva analisar os aspectos de comunicação relacionados ao procedimento de uso de agrotóxicos em uma região agrícola. O estudo foi realizado na região da Microbacia do Córrego de São Lourenço, Estado do Rio de Janeiro. Baseia-se em triangulação metodológica, utilizando: entrevistas semi-estruturadas e observações de uma amostra da população residente na área de estudo (aproximadamente 600 habitantes); questionário elaborado para a caracterização do perfil da comunidade; e registro de palestras proferidas por agrônomos e outros profissionais do comércio e do poder público para a comunidade. Desvelaram-se algumas questões, como: o histórico de desinformação na região; a linguagem técnica empregada em ações educativas e de treinamento, impossibilitando a apropriação do conhecimento por parte do trabalhador rural; e a pressão da indústria/comércio, que cria "necessidades" para legitimar a venda desses produtos, resultando num processo de comunicação que realimenta a inserção desfavorável do homem do campo em uma economia de mercado mais ampla.

Palabras clave
Agrotóxicos, trabalhadores rurais, saúde ocupacional, comunicação, educação em saúde

Clasificación en siicsalud
Artículos originales> Expertos del Mundo>
página www.siicsalud.com/des/expertos.php/20170

Especialidades
Principal: Epidemiología
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Enviar correspondencia a:
Frederico Peres. Rua Leopoldo Bulhões 1480, sala 21. CESTEH. Manguinhos, Rio de Janeiro/RJ 21.041-210, Brasil


Abstract
This study assess communications aspects related to pesticide use in a rural area of the state of Rio de Janeiro, Brazil. The study was carried out in the area of São Lourenço stream. It was based on methodological triangulation comprising: semi-structured interviews and observation of a local population sample (about 600 inhabitants); structured questionnaire to collect data on the local community; and records of lectures given by agronomic engineers, pesticides traders and other public service professionals. This study pointed out to the historical misinformation on pesticides in rural areas; the emphasis on technical language in educational and training activities available which constitutes a barrier for rural workers knowledge acquisition and empowerment; and the pressure of industrial and commercial activities to legitimate pesticide trading, reinforcing the existing communication process, resulting in unfavorable inclusion of the rural worker into a broader market economy


Key words
Agrotóxicos, trabalhadores rurais, saúde ocupacional, comunicação, educação em saúde


OS DESAFIOS DA COMUNICAÇÃO RURAL SOBRE OS AGROTÓXICOS EM UMA REGIÃO AGRÍCOLA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, BRASIL

(especial para SIIC © Derechos reservados)
Artículo completo
Introdução
O termo comunicação tem origem no latim: communicare, que significa "pôr em comum" (Penteado, 1964). A comunicação, enquanto um processo social, está associada à idéia de interação; é, portanto, um processo dinâmico. De acordo com o dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (1987):
"Ainda que definições de comunicação variem de acordo com o quadro de referência teórico empregado, e com a ênfase dada a certos aspectos do processo total, todas elas incluem cinco fatores fundamentais: a) um emissor; b) um receptor; c) um meio ou veículo; d) uma mensagem; e) e um efeito. Assim, em sua forma mais geral, o termo comunicação descreve um processo no qual o emissor emite ou envia uma mensagem, por meio de algum veículo, a algum receptor e produz algum efeito." (FGV, 1987)
De acordo com Paulo Freire:
"Comunicação é a co-participação dos sujeitos no ato de pensar... implica numa reciprocidade que não pode rompida. O que caracteriza a comunicação enquanto este comunicar comunicando-se, é que ela é diálogo, assim como o diálogo é comunicativo. A educação é comunicação, e diálogo, na medida em que não é transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados." (Freire, 1992)
A comunicação social é, assim concebida, um processo dinâmico de interações entre sujeitos (organismos) capaz de produzir um efeito. E dado o dinamismo das relações que levam ao processo de comunicação, não há um sectarismo, ou imobilismo nas funções de emissor e receptor: um emissor pode (e deve) se tornar um receptor, enquanto o receptor pode (e deve) se tornar um emissor.
"A maioria das definições (de comunicação) inclui também a idéia de interação, na qual o emissor é simultânea ou sucessivamente um receptor, e o receptor é simultânea ou sucessivamente um emissor."(FGV, 1987)
Outro atributo do processo de comunicação é a produção de um efeito. Para se conceber a existência da comunicação, na interação de dois ou mais sujeitos (ou organismos), têm que haver a existência de um efeito sentido em, pelo menos, uma das partes (geralmente, o efeito é recíproco - FGV, 1987).São muitas as modificações sofridas por esta definição, básica e dicionarizada, até os dias de hoje, pela contribuição de diversos autores que se dedicam a fazer avançar este complexo campo do saber; no presente estudo, visita-se este campo apenas para situar uma contribuição empírica, que se restringe ao processo de comunicação sobre agrotóxicos no meio rural. Cabe ressaltar, no entanto, que nestas teorias clássicas sobre comunicação, desenvolvia-se a noção de "ruído", como sendo tudo aquilo que atrapalha o processo "emissor - meio - mensagem - receptor". Nos anos recentes, o "ruído" passou a ser tratado não como obstáculo à obtenção do "efeito", mas sim como parte fundamental para a compreensão dos processos de comunicação. Hoje se fala nos antigos "ruídos" como "mediações" básicas ao processo de comunicação, incluindo aí aspectos históricos, sociais, culturais. Segundo Araújo e Jordão (1995):
"A teoria das mediações pensa a recepção como um processo que extrapola a relação emissor - meio - mensagem - receptor, constituindo-se num processo que engloba a vida cotidiana, as instituições, o contexto social, enfim, numa perspectiva histórica e cultural."
A inclusão destes fatores nas análises do processo de comunicação possibilitou o desvelamento, nestas análises, das múltiplas formas de apropriação e produção de mensagens, deixando-se de lado a busca pelo "efeito" por um direcionamento ao "sentido" deste processo de comunicação (Araújo & Jordão, 1995). Segundo Gomes:
"Mediação aparece como um termo para descrever a relação entre a infra-estrutura, a superestrutura, a sociedade e a cultura, relação que agora se dá de modo mediado." (Gomes, 1996)
Ainda segundo a autora, tal processo supera o caráter negativo, implícito na noção de "ruído", passando a comunicação a ser considerada com um processo ativo, positivo e inerente à realidade social.Existe uma comunicação rural
A existência de padrões diferenciados de comunicação dentro de uma mesma sociedade, ou grupo organizado é um fator já conhecido. Esta diferença pode ser claramente percebida quando são comparados padrões de comunicação \'rural\' e \'urbano\'. De acordo com Bordenave (1988), esta diferenciação se relaciona com o fato de:
"A população rural concentrar suas atividades e seu comportamento ao redor de uma atividade toda especial, complexa e marcante que é a agricultura. As comunidades resultantes da ocupação agrícola e do habitat rural, pensam, sentem e agem de maneira diferente da dos habitantes das cidades, comunicando-se também através de códigos e meios próprios."
A origem desta diferença repousa não somente no isolamento do homem do campo, resultante das distâncias normalmente existentes entre os sítios/lavouras e vilarejos e/ou núcleos, agravado pela dificuldade/precariedade dos meios de transporte disponíveis, mas também por características próprias do processo de produção rural, como a jornada exaustiva e o trabalho que demanda esforços físicos fatigantes, restringindo o tempo livre disponível para as atividades sociais e comunitárias. O analfabetismo socialmente determinado e o precário acesso às informações e à educação formal, nas comunidades em questão, também contribuem para uma diferenciação dos padrões de comunicação.De acordo com Ugalde (1985), exemplos históricos atestam a utilização dos conhecimentos gerados pelas ciências humanas na construção de uma imagem deturpada dos habitantes rurais, que tem servido para a legitimação de práticas exploratórias na América Latina, fato este evidenciado também em outras regiões do planeta, sobretudo nos países em desenvolvimento. Ao invés de contribuírem para minimizar as dificuldades de compreensão no contexto da comunicação rural, estes estudos vêm, muitas vezes, aprofundar o distanciamento entre os \'personagens\', rural e urbano, onde o trabalhador rural é freqüentemente estereotipado como \'preguiçoso\', \'individualista\', \'desconfiado\', \'apático\', \'inapto a cooperar\' e \'indisposto a aceitar riscos\'. Impregnado por este universo simbólico, ainda predominante nos meios universitários, o profissional/técnico leva ao campo todas estas distorções de imagem, reforçado por vícios etnocêntricos advindos de sua formação técnica. Estas distorções atendem a uma série de conveniências no campo, como a imposição de uma visão de mundo "profissional", tecnicista, que desconsidera os saberes advindos da cultura popular, numa prática exploratória que Paulo Freire define como uma "invasão cultural":
"A propaganda, os slogans, os "depósitos", os mitos, são instrumentos usados pelo invasor para lograr seus objetivos: persuadir os invadidos de que devem ser objetos de sua ação, de que devem ser presas dóceis de sua conquista. Daí que seja necessário ao invasor descaracterizar a cultura invadida, romper seu perfil, enchê-la inclusive com subprodutos da cultura invasora." (Freire, 1992)
Assim, se estabelece a manutenção de uma postura social sectária, com relação a este grupo, que é "culturalmente impedido" de participar de um processo decisório-social, no qual é o principal ator, necessitando, então, de ser "cuidado", "tratado" e "assistido por aqueles que, "de direito", possuem o conhecimento necessário para tal. Tal postura é particularmente evidenciada em regiões agrícolas que concentram seu processo de trabalho na agricultura familiar baseada em pequenas propriedades rurais, como a zona rural do município de Nova Friburgo, região onde se desenvolveu o presente estudo.Araújo (1995) toma como referencial de comunicação rural:
"As políticas e práticas institucionais discursivas (de comunicação) direcionadas aos segmentos sociais que constituem o público - potencial ou efetivo - das organizações que buscam intervir na realidade do meio rural."
Bordenave define a comunicação rural como sendo:
"Conjunto de fluxos de informação, de diálogo e de influência recíproca existentes entre os componentes do setor rural e entre eles e os demais setores da nação afetados pelo funcionamento da agricultura, ou interessados no melhoramento da vida rural." (Bordenave, 1988)
Tal definição, embora funcionalista, suscita as relações entre a sociedade rural (ou as sociedades camponesas) e aqueles interessados no que o autor chama de "melhoramento da vida rural": órgãos governamentais, grupos religiosos, entidades privadas (ONGs), entre outros. Estas relações, evidentemente, não abarcam todo o universo do que é hoje a comunicação no campo (a TV e tudo o mais), se é que se pode falar nela ainda de forma particular. Para alguns autores, é impossível pensar em um modo de vida exclusivamente "rural" nos dias de hoje, dadas as especificidades e características do processo de produção capitalista, no qual o agricultor está incluso, bem como o processo de "espaciação" das zonas agrícolas e urbanas, conforme apresenta Milton Santos:
"Hoje, as regiões agrícolas (e não rurais) contêm cidades; as regiões urbanas contêm atividades rurais. Na presente situação socioeconômica , as cidades preexistentes, nas áreas de povoamento mais ou menos antigo, devem adaptar-se às demandas do mundo rural e das atividades agrícolas, no que se refere tanto ao consumo das famílias, quanto do consumo produtivo, isto é, o consumo exigido pelas atividades agrícolas ou agroindustriais. Quanto às cidades, aquelas cujas dimensões são maiores, utilizam parte dos terrenos vazios dentro da aglomeração ou em suas proximidades com atividades agrícolas frequentemente modernas e grandemente destinadas ao consumo da respectiva população." (Santos, 1994)
No presente trabalho, porém, que analisa de forma muito pontual os processos de comunicação direta no campo, entre técnicos e agricultores, destinados aparentemente ao "melhoramento da vida rural", serão privilegiadas as relações sociais, como descritas por Bordenave (1988), como forma de construção de um recorte que privilegie alguns padrões de comunicação comuns a esta relação entre os saberes técnicos e "populares", diferenciando a comunicação rural de modelos que tendem à hierarquização das posições entre os sujeitos (relação assimétrica entre os "detentores do saber" e aqueles que destes "necessitam"), como os programas de extensão rural e do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR).Comunicação rural e uso de agrotóxicos: um estudo de caso
Observou-se, nos últimos anos, na região da Microbacia do Córrego do São Lourenço, município de Nova Friburgo, localizado na região serrana do Estado do Rio de Janeiro, um número representativo de casos (suspeitos e confirmados) de intoxicação por agrotóxicos, inclusive com o registro de alguns óbitos. Tal fato motivou a Associação de Pequenos Produtores Rurais de São Lourenço (APROSOL) e a Cooperativa de Produtores de Nova Friburgo (COOPERFRI), ambas com sede na região, a procurarem o auxílio do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Fundação Oswaldo Cruz, o que resultou na construção de um projeto de pesquisa integrado, com participação de várias instituições federais, estaduais e municipais tais como a FIOCRUZ, a EMATER-RJ, a PESAGRO-RJ, o IBAMA, as Universidades do Rio de Janeiro (UNIRIO), do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sobre o "Destino dos Agrotóxicos na Região da Microbacia do Córrego do São Lourenço, Nova Friburgo/RJ".Este projeto buscou compreender o processo de trabalho; o regime de uso de agrotóxicos bem como suas implicações sobre a saúde humana e ambiental naquela região. Em sua etapa diagnóstica, um dos fatores identificados como de alta relevância para o entendimento dos problemas observados naquela localidade, foi a comunicação rural. Para avaliar a significância desta contribuição, foi realizado uma extensiva análise da comunicação rural sobre os agrotóxicos que deu origem a uma Dissertação de Mestrado apresentada à Escola Nacional de Saúde Pública (Peres, 1999). Este trabalho, relata de maneira sucinta, alguns resultados obtidos no desenvolvimento desta dissertação, apontando para os principais desafios desta comunicação enquanto determinantes das condições de saúde e segurança dos trabalhadores rurais daquela região.A atenção da equipe de pesquisadores foi direcionada para a avaliação de pontos considerados como os principais desafios à comunicação sobre agrotóxicos em áreas rurais, a saber:
  1. o histórico de utilização de agrotóxicos na região
  2. as práticas exploratórias da comunicação
  3. o teor técnico da comunicação sobre os agrotóxicos.
Histórico de utilização de agrotóxicos
O histórico de utilização dos agrotóxicos na região de Microbacia do Córrego do São Lourenço tem início, segundo informações de agricultores e comerciantes, há aproximadamente 30 anos. Este período inicial foi marcado por uma pressão forte do mercado para a venda destes produtos, que se materializava pelo trabalho de agrônomos ligados às casas comerciais, acompanhada de uma tendência, por parte destes técnicos, a negligenciar o fornecimento de informações que levassem em conta os interesses e conhecimentos prévios da população.O início do uso dos produtos agrotóxicos na região se deu sob o discurso de que estes seriam uma espécie de "tábua de salvação" para o controle da "infestação de insetos e pragas", que potencialmente poderiam destruir todas as lavouras (é bom lembrar que naquele momento histórico, 30 a 40 anos atrás, o desequilíbrio ecológico no campo era notado em escala bem reduzida, e a utilização de produtos agrotóxicos era tida com uma medida profilática). Alguns relatos obtidos entre os produtores rurais dão conta desta "orientação", recebida geralmente de vendedores:
"Eles falava que se não apricasse, ia chegar a um ponto em que eu não conseguia colher, né, porque os bicho ia atacar a lavoura, né, e que tinha que usar agrotóxico senão não conseguia colher, né, destruía as lavoura, né." (Agricultor, 49 anos)

"A gente, o que era dito era o seguinte, \'você tem que usar este tipo de produto\', quer dizer, \'você deveria, teria que usar porque você corria o risco de perder a lavoura.\'" (Agricultor, 39 anos)
Ao longo destes anos, pôde-se observar, na região, uma mudança de conduta destes vendedores/técnicos com relação à orientação dada na ocasião da venda de seus produtos. Agora não mais se vivia o "terror das pragas iminentes", mas sim o fato (construído por estes técnicos) de que a não utilização de agrotóxicos resultaria na perda completa da lavoura, "verdade" esta que acabou por determinar uma percepção coletiva - na região - de que "se não usar veneno (agrotóxico), não colhe" Este fato foi referido por 100% dos agricultores durante a realização das entrevistas. Associado a esta mudança de conduta, está o fato de que as informações sobre saúde e segurança, relacionadas com as práticas de uso de agrotóxicos, desaparecem das orientações prestadas pelos técnicos, conforme relato de alguns trabalhadores entrevistados:
"Na ocasião que eles vendia, eles já falava pra tê cuidado com isso, que isso é perigoso, na hora de apricá, e a pessoa, é... orientava o povo, né Na hora que foi começando, né, a sair os produto, né, depois pro fim, que pegou a aumentagem, né, pro fim (era) só vender mesmo, eles (já) não orienta mais nada." (Agricultor, 49 anos)
Ou seja, associado ao progressivo de aumento das vendas/consumo de agrotóxicos observou-se uma diminuição/negligenciamento das informações relacionadas à saúde e à segurança do trabalhador rural que se utiliza destes produtos.Neill, em estudo sobre o histórico social das informações relativas à prescrição de psicotrópicos nos Estados Unidos, apresenta constatação semelhante à supracitada, e pode permitir um paralelo com a questão acima descrita. Inicialmente, as bulas e propagandas desses medicamentos, de ação sobre o sistema nervoso central, recomendavam o seu uso como coadjuvantes no tratamento de pacientes com distúrbios psiquiátricos; com o passar dos anos, e com o aumento do mercado consumidor destes produtos, a propaganda sobre esses medicamentos passa a referi-los como sendo o tratamento por si só, caracterizado como "tratamento químico" para os distúrbios psiquiátricos, levado ao status de "ciência" (Neill, 1989). Assim, desaparecem as alternativas a este tipo de tratamento, bem como a indicação de tratamentos auxiliares, nas bulas e propagandas destes medicamentos, fato que também é observado no comércio de agrotóxicos, onde é colocado que não existem alternativas ao uso destes produtos na lavoura, afirmação determinista controlada pela indústria química através dos seus diversos meios de comunicação.As práticas de legitimação da venda/uso de agrotóxicos
O discurso e as práticas vigentes no campo, de um modo generalizado, vêm justificando o uso de agrotóxicos pela necessidade de uma "agricultura produtiva", que seria a única solução para "resolver o problema da fome mundial", uma vez que a "população vem crescendo rápida e exponencialmente" e que "as terras disponíveis para a agricultura estão diminuindo drasticamente". Este é o discurso comum de agrônomos e outros profissionais ligados às casas comerciais (e mesmo de alguns ligados ao Poder Público) e tem uma origem muito clara: o interesse das grandes indústrias químicas, fabricantes de agrotóxicos, que encontram em Associações e Entidades ligadas ao comércio um "respaldo legítimo" para a disseminação de tal idéia:
"Digo isso sem medo de errar, porque é muito simples, é matemático: você tem uma população hoje de mais de 5 bilhões de pessoas, e você tem uma pequena parte dessa população para produzir alimento para a grande parte da população que está nas cidades. Então é... é numericamente impossível você conseguir isso (sem agrotóxicos)." (Engenheiro Agrônomo ligado a uma casa comercial)
A Associação Nacional de Defesa Vegetal, ANDEF, órgão que reúne os fabricantes de agrotóxicos no Brasil, apresenta em sua página da Internet um texto explicativo sobre o porquê necessitamos de agrotóxicos, onde aborda a questão da seguinte forma:
"A demanda de crescimento da população mundial por alimentos e fibras requer uma agricultura que produza grande quantidade por área cultivada. Alimentar as populações futuras da mesma forma como é realizado hoje em dia não é viável: isto requereria um drástico aumento da área cultivada e a redução de florestas naturais. Em muitas partes do mundo não há mais terras aráveis disponíveis. Em outras, uma expansão da área plantada seria ambientalmente e socialmente inaceitável. O aumento da produção a partir da atual área plantada requer o uso de boas práticas agrícolas para combater as perdas causadas nas colheitas.
O desafio está em conseguir isto sem afetar o meio ambiente e os recursos naturais para as gerações futuras de consumidores e agricultores. O uso de produtos fitossanitários e da biotecnologia é um importante princípio sobre os quais a proteção de plantas sustentável pode ser baseada."
(ANDEF, 1999)
A coincidência destes argumentos fica mais evidente quando se tem acesso à página da Internet de uma das maiores indústrias químicas do mundo, e uma das principais produtoras de agrotóxicos, com filiais no Brasil, a alemã BAYER S/A.
"A quantidade de terras aráveis é limitada mundialmente, e a população cresce incessantemente. Como resultado, uma agricultura intensiva, ambientalmente adequada, é necessária para garantir o direito básico de todas as pessoas terem alimento suficiente." (Bayer, 1999a)

"Nossa responsabilidade para com as gerações futuras significa que nós devemos praticar uma agricultura sustentável, garantir que as lavouras serão protegidas e explorar as terras disponíveis à agricultura de modo intensivo. Este é o único meio de garantir que as necessidades de alimento da população, a qual ainda está em crescimento, continuem existentes no próximo milênio - de acordo com as estimativas atuais, a qual está abaixo de 6 bilhões de pessoas, haverá um crescimento de 80 milhões de pessoas ao ano, até o ano de 2020, levando a população mundial para mais de 8 bilhões. Uma agricultura de forma sustentável, propriamente praticada, a qual atinja produtividade máxima, porém com mínimos efeitos adversos para o nosso ambiente, é essencial para prover alimento suficiente para atender às demandas mundiais." (Bayer, 1999b)
Esta "coincidência" torna claro a origem da similaridade de argumentos tanto dos profissionais de campo, quanto da associação que congrega os fabricantes de agrotóxicos no Brasil, e, naturalmente, de uma grande parte dos profissionais que saem das Universidades para o enfrentamento da realidade de trabalho. Os defensores deste discurso desconsideram as técnicas alternativas ao uso de agrotóxicos, por acreditar no modelo agrícola da monocultura exportadora, sustentado pelo uso extensivo de agrotóxicos e outros insumos químicos.De acordo com a FAO (2003), foram produzidos no ano de 2001 nove trilhões de toneladas de produtos agrícolas de lavouras primárias (sem beneficiamento). Se considerarmos que apenas 5% deste montante é destinado ao consumo direto (contabilizando as perdas com estocagem e que o restante vai para o beneficiamento e para a engorda animal), sobram aproximadamente 450 milhões de toneladas/ano para alimentar uma população de pouco mais de 6 bilhões de pessoas, o que daria algo como 200 kg de alimento por habitante por dia. Se considerarmos que, em média, são necessários 2 kg de alimentos/dia para alimentar uma pessoa, teríamos hoje a capacidade de alimentar 100 planetas só com lavouras primárias (sem contar os produtos beneficiados e de origem animal). A perda média de produtividade com as técnicas alternativas chegam à casa de 60% (existem experiências bem-sucedidas onde a perda é aproximadamente 10%). Ainda assim seríamos capazes de alimentar 40 planetas sem o uso de agrotóxicos. Não falta comida: falta coragem às pessoas para admitir que o que impulsiona o modelo agrícola atual, baseado no uso intensivo de agentes químicos, não é garantir a necessidade alimentar do planeta, e sim garantir os lucros relacionados à produção agrícola mundial e à produção/comercialização de agrotóxicos. A fome não é, como dizem os defensores do modelo agrícola baseado no uso de agrotóxicos, um problema de produção, e sim um problema de distribuição de riquezas.À parte o teor alarmista das falas/textos, o que se pode observar é a reprodução dos mandamentos do capital internacional nos discursos de profissionais que atuam no campo, como forma de justificar (ou legitimar) as práticas de uso de agrotóxicos. Alguns pontos podem ser destacados no conteúdo destes discursos:
  1. A legitimação de práticas agrícolas "intensivas" (químicas, tecnológicas, "agressivas") pela demanda de alimentos de uma população que cresce "incessantemente"
  2. A necessidade de uma agricultura que não "interfira" no ambiente (aqui observa-se uma incompatibilidade de discursos: se a demanda de alimentos da população requer uma agricultura intensa, que justifique o uso de agrotóxicos, como fica a proteção ambiental, também exigida, que "vai por terra" com o uso destes produtos Preservar o ambiente é tão somente proteger as florestas, evitando que estas virem áreas disponíveis à agricultura, esquecendo o impacto ambiental causado pelos agrotóxicos Não parece muito verossímil o interesse ambiental destas indústrias; talvez, uma forma de sustentar a sua imagem apoiando-se no grande interesse da população mundial pelas as questões ambientais nas duas últimas décadas)
  3. A responsabilidade imputada à população, de um modo geral, de garantir o alimento para as gerações futuras.
O teor técnico da comunicação sobre os agrotóxicos
Para melhor visualizar-se o processo de comunicação rural sobre agrotóxicos na região estudada, optou-se pela realização de um estudo de recepção das informações oferecidas aos trabalhadores rurais sobre estes produtos. Para tanto, foram selecionados rótulos e bulas de embalagens de alguns produtos agrotóxicos mais utilizados na região, além de material informativo sobre estes produtos.É bastante comum os rótulos de embalagens de produtos agrotóxicos apresentarem em sua borda inferior uma série de pictogramas, teoricamente direcionados à facilitação das "instruções" de uso de tais produtos, em especial para aqueles trabalhadores que não possuem leitura (analfabetos ou semi-alfabetizados). Entretanto, a análise dos dados do estudo de recepção das informações sobre agrotóxicos aponta para uma não compreensão de tais informações, ou ainda uma compreensão que, distorcida, resvala na direção oposta ao do objetivo do idealizador de tal produto ("ensinar" o melhor uso de tais produtos).Aqui apresentam-se alguns pictogramas encontrados nos rótulos de embalagens (de produtos agrotóxicos), o seu significado, de acordo com a indústria/produtor de tais produtos, e o significado de acordo com a interpretação de um grupo de agricultores (n=23):#IMAGEN =perespic1.jpg ">
Pictograma 1.
De acordo com o fabricante:

     Mantenha trancado e fora do alcance de crianças.
De acordo com os produtores rurais:
      "Usando (o produto) sem proteção." (Agricultor, 38 anos)
      "Manter o remédio (agrotóxico) fechado." (Agricultor, 40 anos)
      "Pesando o produto." (Agricultor, 59 anos)
      "Não usar o produto por cima da cabeça." (Agricultor, 44 anos)


Pictograma 2.
De acordo com o fabricante:

     Lave-se após o uso
De acordo com os produtores rurais:
     "Misturando o remédio (agrotóxico)." (Agricultor, 59 anos)
Assim como os medicamentos, os agrotóxicos devem conter bulas, onde constam informações sobre a proteção necessária para o manuseio seguro destes produtos e possíveis efeitos nocivos à saúde. Estas bulas são também ilustradas para que os trabalhadores que não dispõem de habilidade de leitura/escrita façam uso daquelas informações ali presentes. Ao serem questionados sobre o entendimento de tais figuras, os trabalhadores rurais as interpretaram de forma bastante variada e pouco coincidente com o objetivo desejado. Alguns exemplos são dados a seguir:

1ª. figura da bula.
Texto anexo:

     Não desentupa os bicos do pulverizador com a boca e use luvas. Use uma pena, ou uma agulha de plástico ou madeira.
De acordo com os produtores:
     "Tá com uma muda de planta." (Agricultor, 38 anos)
     "Mexendo um copo com uma pena." (Agricultor, 37 anos)
     "Tá vendo fungo na planta (tá com ela na mão)." (Agricultor, 44 anos)
     "Tá furando a tampa com uma pena, isso tá errado." (Agricultor, 35 anos)
     "Aplicar o produto no mato." (Agricultor, 37 anos)
     "É a planta." (Agricultor, 35 anos)


2a figura da bula.
Texto anexo:

     Não coma, não beba e não fume durante as aplicações.
De acordo com os produtores:
     "Um tá fumando, o outro bebendo com a mão suja de veneno." (Agricultor, 38 anos)
     "Tomando café e fumando pra completar a intoxicação." (Agricultor, 37 anos)
     "Um comendo, outro fumando, outro bebendo, isso não pode." (Agricultor, 42 anos)
     "Fumar de luva." (Agricultor, 40 anos)
Para estimularem as vendas dos agrotóxicos, as indústrias fabricantes costumam realizar eventos de apresentação de novos produtos, onde é comum ser distribuído material de propaganda sobre este novo produto, e outros da empresa. Um destes itens é o "folder" (panfleto) de apresentação, material de apelo altamente gráfico, visual, onde são apresentadas as características daquele produto que está sendo lançado, além das vantagens do seu uso. Após estes eventos de lançamentos, tais folders são encontrados no comércio distribuidor, onde o vendedor se utiliza das informações ali contidas para justificar a "necessidade" da compra do produto em questão.O folder geralmente é constituído de apresentação gráfica elaborada, onde se encontrada uma série de ícones cientificistas, a saber:
  1. 1. Gráficos;
  2. 2. Tabelas;
  3. 3. Nomenclatura científica de pragas e plantas;
  4. 4. Testes de campo (aparentemente descontextualizados) para demonstrar a eficácia de tais produtos;
  5. 5. Fotos e ilustrações de plantas na presença (belas, intactas) e na ausência (doentes, destruídas) dos produtos em questão.
Um trabalhador reconheceu nos gráficos uma estratégia de estímulo à venda, utilizada nas palestras promovidas por empresas fabricantes, ou comerciantes, de agrotóxicos:
"Isso aqui eles bota assim a mesma expricarção que o agrônomo faz. Eles bota o produto em comparação, assim com os outro. Eles que tão fazendo a palestra bota que os produto deles é melhor." (Agricultor, 35 anos)
Outro produtor fez uma associação entre as estratégias de venda usadas pelos agrônomos em palestras, os gráficos representados no folder e a eficácia dos produtos que, em ambos os casos, estão sendo apresentados:
"O que que é essas faixa (os gráficos) aqui Isso é igual nas palestra, cada empresa quer mostrar que o seu produto é o melhor. Como nas outra palestra a gente vê esses mesmo produto sendo pior, a gente chega a conclusão que todos são ruim." (Agricultor, 38 anos)
Aqui é possível observar que embora não identifiquem o conteúdo do que está sendo apresentado ali, em forma de gráficos, os produtores relacionam este ícone cientificista aos vendedores de produtos agrotóxicos, o que denota a estratégia de indústrias e casas comerciais em legitimar o uso de tais substâncias pela roupagem científica que lhes é conferida, garantindo, assim, a credibilidade do produto e criando a "necessidade", cientificamente provada, do seu uso.Aparentemente, a presença destes "ícones" é justificada como uma forma de legitimar o uso de agrotóxicos; a "ciência", que sempre apresenta provas irrefutáveis da eficácia de determinadas tecnologias, ali confere um caráter de "respeito" àqueles produtos, que passam, então, a ter o aval desta "ciência" ad hoc, tornando mais fácil o trabalho do comerciante em criar uma "necessidade" de uso dos referidos produtos.Tal fato pode ser observado, hoje em dia, em estratégias de venda/comerciais de uma vasta gama de produtos: o sabão em pó que lava mais branco passa por um teste realizado em laboratório, com uma série de "cientistas-de-jaleco" conduzindo os testes e apresentado o resultado "incontestável" da eficiência do produto; o desinfetante que remove os germes tem sua eficácia apresentada nas lentes de um microscópio, onde uma amostra de piso/azulejo sem o desinfetante é posta em comparação com a amostra contendo o produto, que sempre aparece estéril, um milagre; o aparelho de abdominal (para ginástica localizada) que apresenta resultados visíveis em semanas, resultados estes apresentados na forma de gráfico de barras, onde se dá a comparação com ginástica de academias, regime e outros aparelhos (geralmente, os principais concorrentes de mercado).A ciência ganhou, na mídia e na sociedade em geral, um status de conferir verdade e credibilidade a produtos diversos. Usada com interesses comerciais, como é o caso do folder de apresentação e dos comerciais acima descritos, passa a se caracterizar como manipuladora da realidade, capaz de construir uma série de "necessidades" que só têm um único fundamento: a razão mercadológica e a produção de capital para a indústria/anunciante.Um outro ponto observado foi o teor altamente técnico de alguns dizeres importantes presentes nas bulas e rótulos de embalagens. Algumas destas frases foram destacadas e submetidas ao entendimento dos trabalhadores. Como exemplo, a frase descrita a seguir, retirada do rótulo do herbicida Gramoxone(r), o produto mais utilizado na região - e um dos mais utilizados em toda a área rural do país.
"Esta formulação contém um agente emético, portanto não controle vômito em pacientes recém intoxicados por via oral, até que pela ação do esvaziamento gástrico do herbicida, o líquido estomacal venha a ser claro."
Este produto apresenta uma coloração amarronzada, parecida com a coloração dos refrigerantes tipo "cola". Esta característica peculiar faz com que, uma vez removido do seu frasco original, este agrotóxico possa ser confundido com o refrigerante, e ingerido, sobretudo por crianças (ele é o produto com maior índice de envenenamento por via oral). Dessa maneira, é imprescindível que o rótulo desse produto apresente informações claras sobre os procedimentos a serem adotados, quando de uma eventual contaminação por via oral inteligível mesmo por pessoas com nível educacional encontrado nas populações rurais. Neste ponto é importante ressaltar que nem sempre o auxílio médico está disponível nestas localidades, ficando, muitas vezes os primeiros socorros a serem prestados por pessoas da própria comunidade.Aproximadamente 40% dos produtores entrevistados entendeu que não se deveria deixar a pessoa intoxicada vomitar para que o veneno saísse do organismo (no caso, a dupla negativa "não controle" era identificada como "não provoque", dando um sentido oposto ao pretendido), 40% não fazia a menor idéia do que tal frase informava e 20% interpretou que era um veneno "brabo", e que se a pessoa bebesse, ela ia morrer. Diante do significado da frase, apresentado pelo entrevistador por solicitação de um trabalhador, este sugeriu:
"Em vez disso aí, o sujeito não podia escrever \'se o caboclo beber o veneno, deixe ele vomitar até as tripa\'!" (Agricultor, 35 anos)
Isto posto, surgem alguns questionamentos de imediato: a quem estas informações se destinam Será que, realmente, estas informações são construídas de tal maneira para que não sejam entendidas, como observou um trabalhador, e assim a venda do produto seja efetuada (pois, segundo esse trabalhador, se ele entendesse não compraria)A grande questão é que o interesse comercial, que permeia todo este processo de comunicação, acaba por distorcer o objetivo primeiro de informar; ser claro e objetivo pode significar um boicote ao produto que se anuncia e, por isso, torna-se impossível ser claro e objetivo.É muito comum, ainda, em rótulos de embalagens, material informativo e didático destinados às áreas rurais, e no discurso de uma série de profissionais (ligados ao comércio/indústria ou ao Poder Público) a prática de "culpar" o agricultor pelo uso incorreto, e consequente exposição, dos produtos agrotóxicos. Não se trata de culpa, propriamente dita, mas da delegação total de responsabilidades ao trabalhador, vítima deste processo; a indústria exime-se, assim, da responsabilidade sobre uma prática de venda agressiva, delegando a possibilidade de um acidente ao "ato inseguro" do trabalhador, que foi, praticamente, obrigado a adotar o uso deste produto, não recebeu treinamento/informação adequada sobre o manejo destes produtos e, agora, é culpado no caso de um eventual acidente. As instruções de uso e procedimentos de segurança estão sempre em linguagem impositiva: faça, não faça, haja assim, não haja assado. A estas ordens são adicionadas e delegadas uma série de responsabilidades, tais como:
  1. "Evite a contaminação ambiental. Preserve a Natureza" (assim mesmo, em destaque)
  2. "É obrigatório o uso de equipamento de segurança. Proteja-se" (uma vez que NÓS não te protegemos...)
  3. "Não contamine lagos, fontes, rios e demais coleções de água"
Tal responsabilidade delegada aos trabalhadores costuma ser reforçada em palestras, cursos e eventos de comunicação, por parte de profissionais das mais diversas áreas do saber e de atuação (médicos, técnicos de pesquisa, agrônomos do Poder Público, agrônomos e outros técnicos ligados ao comércio/indústria, etc.):
"Então, é preciso que vocês passem a ler o rótulo do produto direitinho." (Engenheiro Agrônomo do Poder Público)
Como é possível a leitura obrigatória (que eles "passem a ler direitinho") com os altos índices de analfabetismo encontrados nas áreas rurais
"É preciso que cada um de vocês, que trabalham com a agricultura, passe a observar, é... passe a observar o problema do tempo, da chuva, qual a influência." (Engenheiro Agrônomo do Poder Público)
Será que o trabalhador já não observa a natureza, na prática de suas atividades de trabalho
"A maioria dos trabalhadores não acreditam no risco. Tem o aplicador, o preparador da calda, que normalmente é o dono da terra. Ele aplica com o produto concentrado, é o primeiro aplicar. Então, ele acha que não tá se contaminando, mas muitas vezes ele se contaminou mais do que o que aplicou. Mas não adianta, ales não acreditam." (Engenheiro Agrônomo ligado a uma casa comercial)
O lado mais perverso desta prática de culpabilização, tanto no material informativo, quanto nas falas dos profissionais, é a formação de uma autoimagem por parte dos trabalhadores rurais:
"O agricultor ele é um pouco meio teimoso. Muitos não acredita, a gente chegava as vezes pra... certos agricultor e falava \'óia rapaz, vamos fazer uma coisa, trabaiá com precarção, porque o negócio, os ôme tão ai avisando que é perigoso e coisa\', mas tinha muitos agricultor que não acreditava, que não aceitava, né" (Agricultor, 68 anos)

"O pobrema é que o produtor não faz a leitura dos rótulo. " (Agricultor, 37 anos)

"A gente tá por fora de tudo. A gente que vive aqui não sabe de nada." (Agricultora, 44 anos)

"O maior pobrema aqui é o descuido do trabaiadô. A rótulo tem os ensinamento, mas o produtor descuida da saúde dele." (Agricultor, 44 anos)
O problema dos agrotóxicos passa a ser, então, o próprio trabalhador (a indústria delega o problema ao trabalhador, que por sua vez, é levado a crer nesta mentira, e agrava a situação assumindo que ele mesmo é o problema). Tal situação, extremamente confortável para a indústria/comércio, é brutalmente prejudicial para o trabalhador, pois mesmo com esta percepção - errônea - de que ele é o problema, ou mesmo de que a responsabilidade é sua, o quadro de intoxicações por agrotóxicos não diminui, e pior, cresce a cada ano, concomitantemente ao número de novos produtos que entram no mercado.Considerações finais
Não se pode delimitar as barreiras de comunicação observadas na relação técnico-agricultor somente no nível da linguagem; a linguagem não é desarticulada do pensamento, das crenças, da moral e dos costumes dos interlocutores. O indivíduo comunica-se como um todo, ele é o seu principal meio de comunicação. Segundo Marcos (1996):
"A comunicabilidade dos discursos não deve ser procurada no diálogo entre consciências, mas em condições interpessoais de comunicação."
Ou seja, as condições interpessoais definem a comunicação. Assim, a comunicação entre um técnico e um agricultor é influenciada (podemos até dizer determinada) pelo pensamento, crenças, moral e costumes de um e outro; um técnico, por exemplo, ao comunicar os riscos envolvidos com a prática de uso dos produtos agrotóxicos, não poderá estar isento de suas crenças particulares, inclusive na importância dada ao fato de estar ali, comunicando-se com tal trabalhador. Por outro lado, o trabalhador que recebe tal informação, durante este processo de comunicação, não a desvincula do técnico que, ali presente, a está comunicando. Suas atuações anteriores (bem como a eficiência/importância das informações, por este, outrora comunicadas) estarão determinando a aceitação, legitimação e a apropriação destas informações por este trabalhador.A comunicação (e os benefícios óbvios que tais informações trazem àquele trabalhador) é determinada pelas condições interpessoais dos representantes destes dois grupos sociais, ali interlocutores de um processo de comunicação sobre agrotóxicos. Assim, é dependente da interação daqueles que se comunicam, o que, de acordo com Marcos (1996), significa que:
"A interação entre locutores implica em que cada enunciação convirja, pelo menos, em uma outra enunciação. O circuito de comunicação é duplo, no próprio e com o outro, de modo que a escuta e a resposta sejam igualmente duplas, e a aliança relacional funcione."
Como pôde ser observado, ao longo do presente estudo, os problemas de comunicação relatados são bastante preocupantes uma vez que estão associados a substâncias químicas, algumas das quais altamente tóxicas tanto ao homem quanto ao ambiente. A maioria das informações disponíveis sobre estas substâncias são ininteligíveis pelos trabalhadores rurais, o que aumenta o risco associado ao seu uso. É, portanto, imprescindível que este problema seja alvo de um olhar cuidadoso e de políticas e estratégias que privilegiem uma comunicação de risco baseada nas crenças e percepções desta audiência, processo este que deve ser construído em termos comuns aos diversos grupos envolvidos. A comunicação sobre agrotóxicos é, como pôde-se observar ao longo do presente estudo, inteiramente dependente de uma série de interesses que vêm a constituir e criar uma "necessidade" que legitima o uso destes produtos. Ou seja, a comunicação dá o viés pelo qual os grupos de interesse manipulam as informações e mantêm esta "necessidade", o que vem a favorecer estritamente ao capitalismo industrial. Em decorrência, milhares de trabalhadores rurais continuam a morrer, ano a ano. Não foi objetivo deste estudo auferir às práticas de uso de agrotóxicos uma condição de segurança que venha legitimar a sua manutenção enquanto um processo de trabalho. O problema de alimentação está longe de ser resolvido pelo simples aumento da produtividade agrícola, mesmo por que o modelo de produção hoje adotado é capaz de suprir, com sobras, a demanda ora existente. Por outro lado, outras técnicas de controle de pragas alternativas aos agrotóxicos são, hoje, uma realidade, tanto em termos da produtividade quanto em relação aos custos, alem de apresentarem um potencial de contaminação humana ou ambiental muito menor ou mesmo desprezível. O controle dos problemas relacionados ao uso indiscriminado e descuidado dos agrotóxicos, já identificados e bem conhecidos, somente poderão ser superados com a adoção de práticas alternativas ou, quando estritamente necessário, pelo uso seguro e cuidadoso destas substâncias. Para tal, governo, sociedade organizada, grupos de interesse e organizações não governamentais devem estar unidos dentro de um objetivo maior que o lucro: a garantia da qualidade de vida do trabalhador rural, do ambiente e da população, consumidora dos produtos provenientes da lavoura.
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