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Introdução: A válvula aórtica quadricúspide é uma malformação cardíaca rara, estimando-se uma incidência de 0,003 a 0,043% de todas as cardiopatias congénitas. Foi identificada pela primeira vez em necrópsia, em 1862.
Surge habitualmente como uma anomalia congénita isolada, podendo igualmente estar associada a outras malformações, nomeadamente persistência do canal arterial, defeitos do septo interventricular, estenose da válvula pulmonar, malformações da válvula mitral, obstáculos do tracto de saída do ventrículo esquerdo (estenose sub ou supra-valvular), anomalias da artérias coronárias, miocardiopatia hipertrófica ou bloqueio aurículo-ventricular congénito. Destas, as mais frequentes são as anomalias das artérias coronárias.
Foi também descrita em associação com a Síndrome de Ehlers-Danlos.
Graças aos avanços tecnológicos, actualmente é quase sempre possível fazer-se o diagnóstico de forma não invasiva.
Existem cerca de 200 casos descritos na literatura, a maioria dos quais em adultos. A maior compilação de casos publicada até à data incluía 184 doentes, com idades que variavam entre os 2 e os 84 anos, e ligeiro predomínio do sexo masculino. As séries de casos compostas por doentes exclusivamente em idade pediátrica são escassas e de pequeno tamanho.
Hurwitz e Roberts desenvolveram um sistema de classificação alfabético, de acordo com o tamanho dos
folhetos valvulares. Segundo a sua investigação, cerca de 85% dos casos pertenceriam aos tipos A, B ou C.
A importância da detecção atempada desta malformação justifica-se pela sua frequente evolução para a insuficiência aórtica, que apesar de rara durante a infância e adolescência, acaba por se manifestar durante a idade adulta, podendo obrigar a tratamento cirúrgico.
Material e Métodos: Revisão retrospectiva do processo clínico dos doentes aos quais foi detectada uma válvula aórtica quadricúspide, entre Janeiro de 2000 e Dezembro de 2009.
Resultados: Nos últimos dez anos, foram diagnosticados no Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Marta quatro casos de válvula aórtica quadricúspide, em crianças com idades compreendidas entre os 6 meses e os 8 anos. Duas eram do sexo masculino e duas do sexo feminino. Em nenhum dos casos relatados nesta revisão, o motivo de observação estava relacionado com as alterações valvulares encontradas.
Em três casos, os quatro folhetos valvulares eram de dimensões equivalentes (tipo A de Hurwitz e Roberts), sendo este o achado mais frequentemente descrito na literatura.
Apesar de se tratar de uma malformação congénita, o diagnóstico é geralmente tardio. A característica ecocardiográfica patognonómica é a visualização, em eixo curto, de uma conformação em «X» das comissuras valvulares em diástole e aspecto rectangular em sístole. A utilização mais frequente da ecocardiografia transesofágica tornou a detecção das válvulas aórticas quadricúspides mais facilitada e consequentemente mais comum.
Ao contrário da válvula pulmonar quadricúspide, que é cerca de nove vezes mais frequente, a válvula aórtica quadricúspide tende a evoluir para a insuficiência. Esta alteração funcional, causada por assimetrias na distribuição do fluxo transvalvular e desigualdade na coaptação dos folhetos, desenvolve-se de forma insidiosa ao longo de décadas, sendo rara antes da idade adulta.
Na presente casuística, observaram-se com igual frequência válvulas normofuncionantes e válvulas que já apresentavam insuficiência mínima.
Curiosamente, todos os doentes observados nesta série apresentavam outras malformações cardíacas associadas (uma comunicação interauricular, duas comunicações interventriculares, uma estenose supravalvular aórtica e uma válvula pulmonar quadricúspide). Um doente tinha também o diagnóstico de Síndrome de Williams. Esta é uma associação que nunca foi descrita na literatura.
A cirurgia correctiva é habitualmente realizada entre a quinta e a sexta décadas de vida e apenas excepcionalmente em idade pediátrica.
Existem alguns casos relatados de endocardite infecciosa em válvulas aórticas quadricúspides, contudo, a necessidade de profilaxia de endocardite bacteriana permanece controversa, sobretudo quando as quatro cúspides são equivalentes e a válvula normofuncionante.
Na nossa série, com um tempo de seguimento mediano de 2 anos [0 - 9], todos os doentes se mantiveram assintomáticos, não havendo necessidade de instituir qualquer tratamento médico ou cirúrgico versando a malformação valvular aórtica.
Conclusão: O diagnóstico de válvula aórtica quadricúspide é um achado raro, sobretudo em idade pediátrica, quando a maioria dos doentes são assintomáticos e apresentam válvulas sem quaisquer alterações funcionais.
Nesta casuística, os doentes apresentavam válvulas aórticas normofuncionantes ou com insuficiência mínima com igual frequência.
Ao contrário do que está descrito na literatura, todos os doentes apresentavam malformações cardíacas concomitantes, diferentes daquelas tradicionalmente associadas a esta patologia. Descrevemos também, pela primeira vez, a associação com a Síndrome de Williams.
Estes doentes deverão manter seguimento em ambulatório, de forma a detectar atempadamente o aparecimento ou agravamento de alterações funcionais e permitir uma intervenção terapêutica oportuna.